08 October 2003

Blackbird



Pai,
Eu esperei um mês pra chorar por você. Havia muitas coisas pra resolver nesse setembro que não acabava, não acabava nunca. Outubro chegou e uma onda trazida de bons ventos invadiu minha vida. E com isso, veio a calma e a lucidez pra sentir sua falta.

Não sinto dor pela sua ida, eu mais do que ninguém sei que você queria ir. Estou plena e conformada com os meios e o tempo que você escolheu pra morrer. Muito menos estou arrependida de não ter feito nada, você sabe que eu lutei junto com você até o final. Ou de ter deixado de falar alguma coisa, falei tudo, e curioso, no tempo certo. Talvez a morte do Índio tenha vindo antes como uma forma de anestesia, para me preparar para o baque de perder você exatamente uma semana depois. E no dia em que o Índio morreu me veio um desespero inexplicável de não deixar passar a oportunidade de falar para as pessoas ainda vivas o quanto elas eram especiais. A primeira pessoa que eu liguei foi pra você. “Pai, não liga não, eu só quero te falar que eu te amo. Eu preciso te falar que eu te amo e que você é muito especial pra mim, e você precisa saber disso agora”.
Falei a tempo. Mas você já sabia, no fundo você sempre soube.

O que me dá, pai, é um vazio tão grande, de saber que você não vai mais me ligar pra me contar qualquer coisa, pra ouvir minha voz que tantas vezes era um momento de luz nos seus pensamentos. Eu sinto a falta de sentir a sua existência. Meu pai está ali, eu tenho um colo pra correr, não importa se você estava frágil e fraco, não importava todas as crueldades que correram nosso relacionamento. Eu sempre amei você estranhamente, incondicionalmente. Como um filho problemático, eu fui a mãe que sofria com você e por sua causa. Mas que nunca te abandonaria, jamais.

Agora eu estou aqui. Gegé, sozinha. Nem mesmo em companhia de um consolo de uma morte acidental, um lamento de você ter partido sem querer. Eu sei, eu vi, você planejava isso há muito tempo. E concluiu finalmente seus planos quando ninguém mais acreditava. Estou sozinha. Uma solidão pulsante e viva, que parece que é conectada com todas as solidões do mundo. Muitos estão sozinhos como você estava em seus últimos dias, pai. Mas o que a solidão precisa entender é que ela tem sempre uma solidão ao lado dela, que a conforta, que compartilha esse vazio. E se existem muitos como eu, pai, solidão facilmente vai virar solidariedade, em um simples jogo de letras, palavras e amor. Eu vou seguir, pode ser sozinha, pode ser rodeada, mas vou seguir inteira.

Quando veio a notícia, senti paz. Senti uma paz que eu queria que alcançasse você. Meu pai não agüentou esperar a morte, se entregou a ela em seu último ato de coragem e principalmente, de amor. Eu sei claramente seus motivos, e eu sei que foi a única forma de mostrar a todos que ainda havia bondade em você, ainda que encoberta por trevas que você mesmo criou. Você não queria com isso se salvar. Você queria salvar a todos nós, livrar-nos de todo sofrimento causado pelo seu. Você queria ficar livre de todos os monstros que você construiu que te perseguiriam até o seu fim, como em um certo conto inglês de terror. Você se via sem saída dentro de um furacão enorme e escuro. E até o final eu quis entrar lá dentro, no olho da sua loucura, e entender essa dor que não explica por que vem e nunca vai, nunca melhora, mata toda a humanidade da alma, arranca a esperança do coração das pessoas. A alma se torna um sopro, a vida se torna saudade, as lembranças se tornam dor. Num clarão em uma noite, você quis dar um fim em tudo o que você via, uma ilusão de ruínas e morte ao invés de novas chances que despontavam. Você tinha muito mais do que você imaginava, fechou os olhos para a sua própria fortuna. Essa escuridão cegou toda a sua vista, a não ser por um ponto de luz que existia no final. No fim de tudo, ainda estavam suas filhas. Foi a última coisa que você viu, nossos retratos. A perícia disse que encontrou além da sua ilegível carta, os nossos retratos de quando éramos pequenas. De quando tudo era apelidos e presentes. De quando tudo era vivo, claro e colorido, ainda que fosse movido a anfetamina. E foi por essa vida que você não queria deixar morrer, que você entregou sua própria. Você nos amava intensamente e insanamente, e era incapaz de viver com isso. O amor foi seu tiro de misericórdia.

Agora um ciclo se fecha. Sua morte levou consigo a minha infância. Para sobreviver a essa dor que eu não quero encarar, encho o peito de promessas e coragem para ser o que você queria que eu fosse, ou apenas o que você queria ter sido, mas faltou coragem e clareza para ser. Um cara do avesso, com uma inteligência clara e gritante, que você dizia, ser demais para acreditar em felicidade. Com uma fé que fazia você se emocionar cada vez que a expressava. Como pôde uma pessoa de alma em decomposição e corpo desolado me ensinar toda a beleza da fé? Fez-me entender a maior Lição de todas e todas as lições que chegam à Ele. Mas que não conseguiu ouvir ao último e mais precioso chamado Dele, que lhe dava um dia após o outro como uma nova chance, como uma prova de que sempre é tempo de recomeçar quando ainda se tem vida. Teimoso como sempre, meu pai recusou.

Carrego comigo todo o pesadelo e o terror que eu vivi com você, junto com todos os livros e todos os ensinamentos sobre o seu Deus, que era um grande parceiro e amigo e nunca um mentor cheio e ordens e justiça invisível. Todos os trejeitos e repertórios sobre o ser masculino, a arte da vida avessa, a escola do álcool, da prostituição e das ruas, o olhar de Gregory Peck, o carisma de Orson Welles, a dor elegante de Humphrey Bogart. Todas, todas as vezes que você apontou essa arma pra mim, todas as vezes que você me espancou, todas as vezes que eu fugi e gritei, e todas as vezes que eu perdoei. Todos as músicas dos Beatles, que sempre te acompanharam durante toda a sua vida, com suas molecagens no Arquideocesano, a precipitada morte do seu irmão, seus dias de revolução no Mackenzie de 72, nossas viagens e suas histórias a caminho da casa de praia, ao som de Magical Mistery Tour. Todas as vezes que você me ameaçou e me humilhou e todas as vezes que chorou de orgulho, incrédulo por ser merecedor de duas filhas. Toda a montanha russa que é lembrar de você, com sentimentos maravilhosos e aterrorizantes que refletem sua doença, bipolar, de euforia e depressão, orgulho e medo, que ainda hoje me fascina e me assusta. Mas não me acovarda.

Meu pai gostava muito de uma música particular dos Beatles, que a primeira vez que ele entendeu a letra foi quando eu traduzi, 30 anos depois do seu lançamento. Estava ansioso para ouvir o que ela significava, sabia que aquela música havia uma mensagem muito especial para passar pra ele. Quando eu finalmente li a tradução ele ficou meio desapontado, achava que faria mais sentido. Blackbird. Essa música foi composta para você, papai. Só ela poderia versar o verdadeiro sentido do seu suicídio.
A escuridão só encontra a liberdade na morte.
Voe em paz, pai.

Blackbird singing in the dead of night.
Take these broken wings and learn to fly.
All your life,
You were only waiting for this moment to arrive.

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