Verde-amarelo-azul-caucasiano.
A política é agridoce.
28/03/2004 - 06h01
Michael Moore elogia política brasileira em "Cara, Cadê o Meu País"
Saudações, meus amigos brasileiros e orgulhosos membros da Coalizão dos Sem Vontade!
Qual é o problema com vocês? Por que é que vocês não demonstram boa vontade e não se juntam a nós nesta guerrinha contra o Iraque? Vocês não sabem que é preciso obedecer e fazer o que foi mandado quando a única superpotência sobre o mundo está ladrando? Nós latimos, vocês pulam --essa é a regra! O que é que houve? Mr. Bush não ofereceu uma caixinha boa o bastante pra animá-los a apresentar armas e bombardear o povo do Iraque? Vocês não sabiam que Saddam, o Malfeitor, tinha armas de destruição em massa? Tremendas armas! Isso mesmo! Assustadoras! Ele... ele... ele pode ficar invisível, e ele tem ocultos e malignos poderes do tipo, ahn, ele, ele, ele pode transformar você numa traça! E, e... ele pode voar, também! Ele pousou no topo do Empire State Building --eu vi-- e parecia que ia acabar com a gente! No duro!
Para os milhões de nós que, aqui nos Estados Unidos, tratamos de fazer o melhor que podemos para impedir que se alastre pelo mundo a ameaça do regime Bush,
seus esforços aí no Brasil para confrontar e resistir a Bush são altamente necessários. Mais que isso: são desesperadamente apreciados. Não nos servem para nada esses líderes cretinos (como Tony Blair) que seguem como carneirinhos as idéias cretinas do nosso próprio e cretino "presidente". Afortunadamente vocês --o belo povo brasileiro--, junto a um punhado de outro países, não se intimidaram com a provocação da guerra. O ano que passou assistiu à ocorrência, ao redor do mundo, de algumas das maiores demonstrações contra a guerra em toda a história. Tudo que eu posso dizer a vocês é obrigado, obrigado, obrigado.
Recentemente, em viagens ao exterior, as pessoas me agradecem e me saúdam como "o único americano são". É um cumprimento, mas não é verdade. Eu posso garantir a vocês que nem toda a América enlouqueceu. Por favor, jamais esqueçam esta simples e única verdade: a maioria dos americanos não votou em George W. Bush. Ele não está na Casa Branca pela vontade do povo americano. A maioria dos americanos, contrariamente à crença popular, é de fato bastante progressista e liberal --só que faltam líderes realmente comprometidos com o caráter liberal para servi-los. Quando isso for consertado (eu espero que logo), as coisas vão melhorar.
Eu venho aqui para lhes dizer que não estou sozinho, e que na verdade estou prensado no meio dessa nova maioria americana. Dezenas de milhões de cidadãos pensam como eu penso e vice-versa. Acontece que vocês não ouvem falar neles --muito menos pela imprensa. Mas eles estão aí --e sua ira apenas começa a emergir à superfície. O que eu faço é apenas continuar ajudando na tarefa de perfurar essa camada, de forma que a raiva emergente desses milhões possa jorrar poderosa, como um gêiser de ação democrática.
É compreensível que o Brasil e o resto do mundo pirem com o comportamento dos Estados Unidos da América. Vocês têm razão para tal. A turma no poder aqui é pra lá de Deus me livre. Tudo que vocês têm a fazer é perguntar a si mesmos: "Se esses gangsters são capazes de roubar uma eleição, do que mais eles não seriam capazes de fazer?". Eu só digo o seguinte: nada vai detê-los na destruição do que estiver no seu caminho, especialmente se eles estiverem no caminho de fazer mais uma graninha. E eles vão castigar vocês, sejam aliados ou não, se vocês não se ajoelharem e baixarem a cabeça à passagem deles, em marcha para a próxima troca da guarda do poder (preferivelmente, o poder de uma nação que possua uns bons e lucrativos lençóis de petróleo, obrigado). Tudo isso vai acabar por levá-los --e a nós-- à ruína, é claro. Eu acho que a maioria dos americanos, por uma estreita margem, se dá conta, em algum ponto de suas entranhas, dessa situação dramática. Eles estão apenas miseravelmente perdidos, em parte por uma forçosa ignorância que começa na escola, onde eles aprendem algo próximo a nada sobre o restante do mundo, e que continua ao longo de todas as suas vidas adultas, servidas por uma mídia que eliminou qualquer traço de notícias estrangeiras que não tenham algo a ver com os Estados Unidos.
Que nada saibamos respeito de vocês deve ser a coisa mais assustadora do mundo a nosso respeito.
A maioria de nós não consegue localizar vocês no mapa --e, pior, também não conseguimos localizar nosso inimigo. De acordo com uma pesquisa recente,
85% dos americanos adultos com idades entre 18 e 25 anos não conseguem achar o Iraque em um mapa. Eu acho que o primeiro parágrafo do código de leis internacionais deveria ser o seguinte: se um povo não consegue encontrar o seu inimigo sobre o globo terrestre, ele não tem permissão para bombardeá-lo.
É possível que um povo tão ignorante esteja no controle do mundo? Antes de mais nada, como foi possível que chegássemos lá? Oitenta e dois por cento de nós não temos nem sequer um passaporte! Só um punhado de nós pode falar em outra língua que não o inglês (e nós mal falamos essa...). George W. só agora anda vendo o resto do mundo, e porque ele tem de ver, poirque, uai, é u qui us presidente faiz.
Eu acho que nós só estamos no comando do mundo porque temos armas maiores. É engraçado como isso sempre parece funcionar. Nós "ganhamos" a Guerra Fria por desistência --a União Soviética, graças ao sr. Gorbatchev, decidiu simplesmente saltar fora depois que eles se viram estrangulados em um sistema que não funcionava, só isso. O regime que controlava a Alemanha Oriental caiu porque as pessoas saíram às ruas e começaram a bater num Muro com marretas. Cara, saca essa --troca de regime sem que um único tiro seja disparado!
Alguma coisa aconteceu na África do Sul também --ninguém precisou bombardeá-la para que seu povo fosse libertado! Aliás, contam-se por aí umas duas dúzias de países liberados, nessa década e pouco que passou, graças a uma combinação de pressão mundial e, acima de tudo, da própria deliberação dos povos, que se ergueram de forma não-violenta para tomar as rédeas do poder.
Mas como nós não temos notícias de nada que ocorra para além do Brooklyn ou de Malibu, eu acho que nós não ficamos sabendo como se fazem legítimas mudanças de regime. Daí que, no caso do Iraque, não foi preciso muito para puxar a manta sobre os olhos dos americanos (conectar o 11 de setembro de 2001 a Saddam Hussein é o meu preferido entre os artifícios usados) e fazê-los cair nessa.
Ok, é compreensível. Nós não aprendemos mesmo e, como eu estou certo de que vocês sabem, somos uns crentes irrecuperáveis. Somos muito sociáveis e generosos e simples na nossa maneira de ser. Se vocês nos disserem que precisam da nossa ajuda, nós saímos correndo em seu socorro. Se vocês nos disserem que jumento voa, nós vamos acreditar (desde que tenha aparecido na TV). É assim que nós somos e, eu tenho certeza, vocês acham charmoso esse nosso jeito. Me digam se não, admitam, vá, é disso que vocês gostam em nós! Sem mencionar nosso espírito pra cima, empreendedor! Antes do meio-dia nós apresentaremos ao mundo a próxima grande invenção! Determinação! Ambição! Firmes na postura do "sim, eu posso"! Tá certo, nós não tivemos um único dia de folga nos últimos seis anos - mas e daí? Quem é que precisa dormir? Nós temos um mundo pra governar!
Essas são, suponho, as razões pelas quais nós temos nos comportado desse jeito. Agora pergunto eu: que desculpa que vocês têm?
Vocês têm uma rica, única, maravilhosa cultura. O Brasil é um lugar tão fantástico que fez com que a família real portuguesa abandonasse o próprio país e fosse praí montar a lojinha! Tudo que eu tenho visto do Brasil --o povo, as praias, a música, as praias, a dança e... eu já falei das praias?-- me fez ficar convencido: Deus tem de ser brasileiro. Mas apesar de todas essas vantagens, o Brasil tem uma porção de senões, e é mais que tempo que os afortunados façam alguma coisa a respeito.
O Brasil tem de se erguer acima dos seus problemas, do racismo arraigado, do qual muitos não querem nem falar, aos déficits nacionais, sob os quais muitos gostariam de ver seu país esmagado. Fazer frente à América na questão da guerra (e ainda gozar com a cara das políticas de imigração do Bush) foi uma atitude fantástica.
Eleger um líder popular que saiu das classes trabalhadoras foi um tremendo passo à frente. Resistir à Alca também é bom. Sigam no caminho, lutem o bom combate. Você têm a economia mais poderosa entre as das Américas do Sul e Central --vocês estão na posição de dar o exemplo, de mostrar a outros o caminho certo. Tenham sempre isso em mente.
E, pelo amor de Deus, parem de gastar dinheiro com o Exército. O Paraguai já está ferrado o bastante sem a "ajuda militar" que vocês possam dar.
Agora as boas notícias: enquanto eu escrevo este prólogo, uma nova pesquisa de opinião registra que, pela primeira vez, a maioria dos americanos não acredita que Bush venha a ter um segundo mandato. Essa é uma tremenda notícia, considerando-se o apoio que ele teve a princípio para sua guerrinha, a mesma que acabou por se tornar uma guerra sem fim. Viu só? Há vantagens no fato de que os americanos tenham uma capacidade tão limitada de concentração e na nossa necessidade de sermos gratificados de forma instantânea. O Iraque não foi como Granada, e já encheu o saco! Nós queremos programas de TV com final feliz! Ei, por que esses caras continuam atirando na gente? Eu quero ir embora! Uáááááááááááááááááááááááá'!!!
Só mais uma coisa... Do ano passado para cá, desde que meu livro "Stupid White Men - Uma Nação de Idiotas" e meu documentário "Tiros em Columbine" foram lançados, eu tenho ficado impressionado com a resposta ao meu trabalho em todo o mundo. Dois anos atrás, foi uma honra mandar o Columbine ao Festival de Cinema do Rio, e eu estou igualmente honrado que este, meu mais recente livro, tenha sido agora traduzido para o português. Nestes vinte e quatro meses que então se passaram, tenho tido um retorno cada vez maior de mais e mais brasileiros. Espero que todos vocês continuem trocando idéias comigo --sobre o meu país, sobre o seu país-- e que, unidos às pessoas que estão conosco em todo o mundo, nós possamos nos proteger uns aos outros das más decisões dessas figuras que freqüentemente se proclamam nossos líderes. Mais de cinco milhões de cópias de "Stupid White Men" foram impressas em todo o mundo (parece que só Harry Potter vendeu mais), e a bilheteria de "Tiros em Columbine" estabeleceu o recorde de todos os tempos para um filme documentário. Estou muitíssimo agradecido, porque significa que posso seguir publicando as palavras que eu quero publicar e fazendo os filmes que eu quero fazer, sem interferências.
É uma dádiva, que não tomo como um acaso. Eu a tomo como um sinal de que o público deslocou-se da direita e que o tempo está maduro para um movimento em direção àquelas coisas boas que nós gostaríamos que acontecessem. É encorajador saber que, no ano passado, numa época em que Bush era supostamente tão popular (como a mídia insistiu erradamente em registrar), o livro que os americanos mais compraram e leram, mais que qualquer outro, levava por título "Stupid White Men - Uma Nação de Idiotas", e era estrelado por ninguém menos que George W. Bush. Vocês viram? Nem tudo está perdido!
Tenham fé! Confiem! Tenham esperança! Mantenham o Carnaval pelado!
MICHAEL MOORE
E quer saber? Eu gostei. Sei que muita gente vai discordar e para variar, criticar o texto, alegando que mais uma vez os Estados Unidos se apresentam na forma de heróis.
Seria uma nova tentativa de política de boa-vizinhança? Michael Moore é o novo Pato Donald? E está na verdade a serviço de Bush? Talvez. Nós, como bons colonizados por hollywood, vamos inventar vááárias teorias da conspiração em cima disso, e não vamos acreditar em bobagens cult-sensacionalistas que a carta Capital publica, dizendo que todo mundo aqui é pau mandado do FBI.
E quer saber? Pau-mandados ou não, com Moore ou sem molho, não faz diferença. Se teve uma coisa que nós aprendemos nesses 1500 anos é que nada, absolutamente NADA resiste a nosso jeito de ser brasileiro. Pode vir quem for. Podem querer fazer o que que quiserem. Podem botar base americana pra dentro do mapa, Amazônia pra fora. O Brasil tem Minas Gerais pra comer quieto, a Bahia pra dar sombra, água fresca e uma boa dose de preguiça, o Rio pra dar mulher pelada e outras distrações, São Paulo para lucrar de qualquer jeito, o Sul pra deslumbrar. Não tem jeito. Entra cultura estrangeira, sai ourtra. Entra DEA, sai PM do Rio. Nenhum deles conseguiu impor sua totalidade. Quer ver imperialismo americano, baby? Vá ao Japão.
Aqui a gente vai levando, se fazendo de Nação de Idiotas pra quem quiser ver. Mas qualquer brasileiro sabe, que quando o bicho pega de verdade, todo mundo sabe direitinho como sobreviver.
Aqui não é Madri, nem Buenos Aires, aqui não é Havana, aqui não é Los Angeles, aqui não é Angola. Não é qualquer tremor de terra ou de barriga que vai fazer o Brasil cair.
Michael Moore, mesmo elogiando tanto o Brasil, ainda não conheceu a Bahia.
Se tivesse conhecido, certamente o presidente Bush estaria com menos dor de cabeça.