capítulo 2
Quando duda acordou, sabia que não estava em seu quarto, mesmo assim ainda demorou um tempo para situar-se de tudo o que estava ao seu redor. Tocou seu corpo, por cima do gordo edredon azul que a cobria. Algo estava estranho. Ouviu um barulho na cozinha, de panelas, pensou que pudesse ser Gil fazendo café. Levantou-se para ajudá-la mas logo voltou para a posição inicial. Além de estar completamente nua, uma dor-de cabeça tomou conta de todos os seus pensamentos, tal como a grarrafa de vinho fizera na noite anterior.
Ficou deitada, pensando, voltando a sonhar, tentando lembrar cada movimento seu até então. Fechou os olhos e logo se sentia sentada naquela canga novamente, com o pôr-do-sol a sua frente e Gil, ao seu lado.
Gil tinha 28 anos, era mais velha. Era uma típica escorpiana, como fazia questão de acrescentar. Tinha cabelos curtos, encaracolados, pele bem morena, índia, olhos amendoados, levemente puxados. Verdes. Duda sempre teve receio a pessoas de olhos claros, dizia que não eram confiáveis. Mas Gilda era diferente, talvez porque não houve uma antipatia inicial ao se conhecerem, coisa quase impossível de acontecer entre duas mulheres. Não que Duda confiasse nela, mas alguma coisa dizia que era inútil desconfiar.
Como Duda, Gil também era baixinha, mas não era corpulenta. Era um corpo que sentia saudades do balé quando criança e que há muito tempo prometia uma academia, que sempre era deixada para depois. Ao pensar nisso, Duda tentou lembrar de mais detalhes deste assunto. Não conseguiu. Essa maldita dor-de-cabeça. Na verdade, não importava o que ela tinha deixado de ver ou lembrar. Ela sabia extamente o que havia sentido.
Estava quase anoitecendo quando Duda conheceu Gil. Ao contrário de Duda, Gil tinha um emprego que gostava, mas também tinha ido à praça para tentar, de alguma forma, olhar para o seu futuro sem mais pensar em objetivos, mas em sonhos.
- A gente esquece muito rápido do que nós queríamos ser quando crescêssemos. Num piscar de olhos, nos encontramos nem com trinta anos completos e nos achamos velhas demais para pensar no que ainda há para viver. Nos resta pouco agora: um casamento, um filho, uma pós-graduação.
- Não é isso o que vc quer? - disse Duda, tentando ajudar quem ela sabia que estava menos perdida do que ela.
- É claro, eu quero um filho. Mas eu não sei se eu quero um filho porque querem que eu tenha ou porque tenho vontade mesmo.
- Toda mulher tem que ter um filho, essa é a nosssa principal função como bicho.
- Mas vc está me dizendo isso porque sabe que é livre. Vc pode escolher ser mãe, escolher querer ter uma criança e concluir que toda mulher deveria. Mas foi vc que escolheu. Tem muita mulher que não sabe que pode escolher não ter um filho, escolher não casar, escolher não fazer plástica aos quarenta, escolher não se obrigar a ter um ritmo de vida maluco que essa cidade impõe.
- A vida passa rápido, Gil. - conformava-se Duda. - Se a gente for se preocupar com tudo o que acontece a nossa volta, ficamos para trás. Temos que tentar seguir um ritmo, estabelecer um padrão de vida, muita gente não consegue viver sem isso.
- Muita gente tem preguiça de viver sem isso. - Gil sabia que esta era uma conversa longa e pior, inconclusiva. Como querer discutir as vantagens do socialismo em um Shopping Center. O que ela queria mesmo era descobrir Duda. - Me diga, Duda. Você acompanha seu ritmo?
- Claro que sim! - claro que não, pensou Duda. - A gente ter que correr, manter o pique, correr para não chegar em último sempre. - Do que ela estava falando? Da vida ou da maratona São Paulo? - Claro que nem sempre a gente ganha, mas o importante é estar sempre correndo, sempre suando a camisa.
- E para onde vc está correndo, Duda?
Duda parou de falar. Viu Gil olhar no fundo de seus olhos, e perceber que ela não sabia. Nunca tinha pensado em um motivo para correr. Apenas sabia que tinha que fazer isso. Pelo menos foi isso o que ela sempre ouviu.
- Acho que... - concluiu Duda. - eu não ando com fôlego suficiente.
- Não se preocupe, Duda. Ninguém está.
Gil realmente estava falando a verdade. E a cada vez que ela falava, vinha aquela sensação em duda de que ela poderia contar qualquer coisa para Gil. Gil parecia capaz de resolver toda a dor do mundo, estava plena. Sabia quem ela era, sabia por que seu coração batia.
- Todo mundo corre - continuou. - Só que ninguém sabe se corre porque está buscando alcançar alguma coisa, ou se está fugindo.
- Você - perguntou Duda, a conversa estava ficando por demais só nela. - Vc busca ou foge?
- Eu fujo para poder alcançar o que eu quero.
- E o que vc quer?
- Amar em paz.
Duda sorriu, mas seus olhos não a acompanharam. Olhou para baixo, para sua posição, encolhida, olhou para dentro de si. Nuca ela teria respondido uma coisa assim. E esta foi a resposta mais bonita que ela conseguiria imaginar. Desapontou-se. Sabia agora mais do que nunca que aquela paz que encontrava nas mãos frias de Gil estavam muito longe dela.
- Você busca alguma coisa, não é Duda? - Gil arriscou. - O que é, o que você veio procurar aqui hoje?
Pausa. Duda respirou, olhou para a frente. Nem pensou em dizer nada do que ela queria, nem o baseado que estavam fumando perto delas, que em uma hora como aquela, até que não era mal. Mas uma resposta desta e ela perdia todo o entusiasmo de Gil frente ao que estava procurando saber. Dizer a verdade. Simples. Honesta. Limpa.
- O pôr-do-sol apenas, Gil. - e olhou para os últimos raios de sol que mal iluminavam a praça. - Hoje eu vim só pra ver o pôr-do-sol.
-O pôr-do-sol já se pôs, voce já encontrou o que queria. E agora?
Como assim, e agora? O que mais buscar depois que já se encontrou o que procurava?
- Agora, o que a noite quiser me oferecer, é lucro.
- OK - Gil pegou a mão de Duda para levantá-la e lhe ofereceu. - A noite acaba de te oferecer uma nova amiga, e a nova amiga está te oferecendo um vinho aqui perto. O que voce acha?
E por que não? Enquanto pensava feliz em não econtrar uma resposta para essa pergunta, Duda levantou-se leve e silenciosa, com a ajuda de Gil.