17 December 2002

Mangoclipping - carandiru


Quequell,
Amei seu comentário, ainda mais porque sei que este é totalmente livre de outras influências de opinião a não ser do seu próprio coração.E desta veracidade, ninguém contesta.
Gostei tanto que eu não poderia deixar de colocar aqui no mango, pra quem quisesse ver. Vale a pena. Todos deveriam ter feito a mesma coisa que vc fez. Corajosa ao ponto de ir até um lugar horrível como esse, e sentir-se envorgonhada e a'lém de tudo, escrever este texto impecável (e que tem a sua cara) para o Estadão.
Parabéns.

"Os amotinados do sistema", por Raquell Guimarães Duarte

Neste domingo, 8 de dezembro, o maior presídio da América Latina - Carandiru - foi demolido. Meses atrás eu estive lá para uma visita. Os presos já tinham sido transferidos, e a "sucursal do inferno" estava aberta para curiosos como eu, que sempre que o trem do metrô de São Paulo parava na Estação Carandiru, arregalava os olhos de susto. Neste trecho da linha, os vagões não correm escondidos no subsolo e a visão doía profundamente em quem não ignorasse a paisagem.


Dentro do Carandiru, andei pelos sombrios pavilhões ouvindo os dois lados: da polícia - um carcereiro que fedia pinga - a um ladrão, André du Rap, ex-detento que hoje vende seu livro no portão, rato de mídia que adora dar entrevistas com respostas prontas.

No pavilhão 5, conhecido como "castigo" tem uma carga dolorida de tortura no ar. A "solitária" (apenas no nome), refúgio dos jurados de morte - quando pedem o "seguro" - é escura e abafada. Na parede, garranchos escritos em fezes: para meus inimigos, trago do inferno o sorriso da morte.

Ali dentro sobreviveu uma sociedade com suas próprias leis. Língua própria, hierarquia, poder, política, religião, futebol, comércio, mercado imobiliário (o metro quadrado numa cela varia em torno de R$ 500), casos de amor, de ódio, dias de festas (pessoas se casavam lá dentro) dias de morte, para não falar em sexo, drogas e uma incrível indústria de facas feitas da porta da cela. Mas ninguém vê. É impressionante...

Sinto culpa e vergonha. Estou chocada, estupefata diante do descaso. A clássica desculpa mais ouvida: Pouca polícia para muito ladrão. Presos de mais para cadeias de menos. Enquanto o ex-presidiário me relatava torturas, descrevendo a bóia fria misturada a ratos vivos e urina, eu engoli o choro diante de um bandidão que em menos de um ano de liberdade já matou e foi em cana mais 39 vezes. É realmente difícil olhar para uma figura dessas e pensar em direitos humanos, mas precisamos pensar ao menos numa solução para que a prisão seja um local de regeneração, e não um campo de concentração.

Projetos existem e a construção de presídios modelo lá no meio do sertão, não custariam mais caro que o prédio do TRT de São Paulo, lembram do juiz Nicolau? Está preso, antes isso! Queria que alguém tivesse a coragem de fazer uma visitinha a ele e levar o "menu" do Carandiru.

Estamos numa fase de renovação dos nossos políticos, gente que fala muito em segurança e promessas de justiça. Me dirijo então a vocês, senhores eleitos. Como pode o governo levantar palacetes e fechar os olhos para o sistema carcerário denunciado á ONU por violar os direitos dos presos que passam fome e não dispõem de condições mínimas de higiene?

O Brasil se orgulha dizendo que aqui não tem pena de morte, mas há. Depois da morte moral, quando o indivíduo perde o direito de gente e é tratado pior que bicho, vem a morte conseqüente de moléstias ou a morte por "sorteio", já que não existe mais espaço nem oxigênio.

Bandido precisa de castigo, punição, isolamento da sociedade a qual ele desrespeitou, mas não podemos ser mais cruéis que eles. Nós aqui não precisamos de injeção letal nem de cadeira elétrica, somos bárbaros. A solução para a última rebelião da Casa de Detenção foi sua demolição, como se a culpa fosse daquelas paredes grafitadas artisticamente, ilustrada de mulheres peladas e santos.

Os presos e seu ranço foram lotar outros presídios do estado, mas longe ou perto, o problema continua, e se agrava. Cada dia maiores injustiças e maus tratos são cometidos sem piedade. Mas em nome de quem? Da própria justiça? Bem que me disseram que ela é cega...

Ali agora, será um arborizado parque da juventude, com direito a escola, praças da alimentação e cultura. Assim é o nosso país!
Raquell Guimarães Duarte é estudante da Faculdade Paulista de Arte.

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