pesadelo
Aí eu acordei e ele tava do meu lado, do jeitinho que eu tinha deixado na noite anterior: apenas coberto com lençol, e eu me lembro que era branco, assim como o quarto inteiro era branco, lindo lindo, apenas com uma flor muito vermelha que sobressaltava dentro de um vaso de metal escovado.
Ele levantou, feliz da vida, sem pressa, diferente do que eu estaria acostumada.
Me pediu alguma coisa, acho que ele pediu para que eu ficasse, e não sei diabos porque eu tinha que ir embora. Mas fui. Dexei ele lá, fofíssimo, sozinho, naquela casa enorme, maravilhosa, que não perdia nada para a maison Big Brother. Lá dentro, estava cheio de gente, muitas loiras e (engraçado dizer isso mas devo acrescentar) elas não pareciam odiáveis. Todas elas se despediram de mim, como sereias gentilmente deitadas na areia, esparramadas nos pufes (brancos) da sala de televisão, todas com camisões de quem tinha acabado de acordar.
Fazia um dia exatamente como este, nublado, com um ventinho delicioso, nem gelado, nem abafado, só friozinho.
Do lado de fora da porta principal (gigantesca, de madeira maciça esculpida) encontrei para a minha TOTAL surpresa, a Rê, o Marcão e o Piu. Tinham ido ver se estava rolando alguma festa lá dentro, algo assim, não lembro agora. Quando eu olhei para o Piu, pulei no pescoço dele, há tempos eu não tenho nem notícias do Guilherme. Ele só se tocou de que estava falando comigo depois de um tempo, agora me ocorreu que talvez eles estivessem totalmente fumados.
Obviamente,eu estava com fome. Fomos tomar café da manhã numa espécie de trailler que tinha ali perto, na rua. Que nojento, que é que me deu de tomar café num trailler?? Enfim, pedi um guaraná e alguma coisa para comer. Devia ser alguma coisa mais esdrúxula do que pedir guaraná como acompanhamento no café. A mulher que servia no trailler tinha acabado de sair de um desenho animado do Pica-Pau: nariguda, verruguenta, barrigão e braços finos, pernas pelulas e enrugadas, cabelo oleoso, encrespado e fedorento. Ela fez algum comentário sobre mim que fez todos os presentes rirem. Olhei ao meu redor e haviam muitos velhos. Daqueles que usam a mesma roupa todos os dias, aquela jaqueta de veludo marrom-claro que foi comprado em 1974 e uma blusa de lã cinza-musgo encardida. E o cheiro característico. Todos eles grisalhos, ranzinzas, com barba por fazer, espumando a maionese no canto da boca, rindo com a boca aberta, com o hamburger inofensivo dançando nos dentes cariados.
O homem que estava do meu lado direito me olhou, e numa risada espirrada, falou que eu devia dormido na lama, rolando com algum cachorro porco e pervertido. Então vi que eu estava vestindo a minha camisa branca (que sempre uso), só que ela estava toda suja e amassada, pois de fato havia dormido com ela (o que não é nada raro, preguiça de tirar a roupa da balada para dormir) mas estava excepcionalmente suja, cheia de terra, cheia de barro, sei lá. Parecia de fato que eu havia feito algo de...sujo na noite anterior.
Humm. Freud explica.
De qualquer maneira, não quis deixar o insulto por menos, mas a minha reticente cabecinha não foi suficientemente rápida para criar uma irvertida na hora. E só depois que o assunto já havia dissipado, eu resolvi bater nas costas do velho (cujo perímetro era bem intimidador) e dizer alguma coisa sem sentido, no mínimo alguma frase que eu fiquei treinando durante muito tempo e na hora de falar, me embananei. Dei as costas, rindo, falsamente vencedora. Quando bati nas costas dele percebi que ele tinha o braço esquerdo defeituoso. Era mole, e toco. Ele, atrás de mim, gritou "Não ri, não! NÃO RIA DE MIM, NÃO RIA!"
Com certeza ele pensou que eu estava caçoando da deficiência dele, e não era isso.
De repente estava muito escuro em uma esquina que entrei. Ainda ouvia o velho maluco repetir aquela mesma frase, só que agora cantarolando. A medida que eu me afastava do lugar, o canto escarrado do velho não diminuía. Olhei pra trás. O velho estava atrás da gente.
Sim, agora havia mais alguém comigo, uma menina, que parecia ser minha irmã, mas eu sabia que ela não tinha nada a ver comigo. Não foi o que o velho pensou quando ameaçou acelerar o passo em nossa direção.
No que ela gritou "Ele está atrás da gente!!!!", ele começou a correr, cambaleando, mancado, como um corcunda, como um monstro, um frankenstein no meio das sombras das árvores, que por pura filhadaputice aumentavam suas frondes a medida que a gente passava.
O velho não parava de cantarolar. Em nenhum momento. E ria, ria devagar, ria paciente, bêbado.
Eu corri até não poder mais. Suava de medo e só ouvia a outra menina gritar atrás de mim, chorando. Ele gritava de volta, chamava ela de gostosa. Ela deveria ter uns 11 anos. Mas em nehum momento senti que ela estava tão desesperada quanto eu.
Não sei como eu atravessei os muros e umas ruínas para me esconder do cara. Dos cercados de arame farpado, um atrás do outro, que deixou a menina para trás, no meio de um campo de areia. Havia muros em volta. Eu corria na frente,desesperada, procurando uma saída para alquele lugar, procurando um esconderijo, para mim e para a menina que agora havia silenciado. Mas o velho não. Ele arfava, babava atrás de mim, e eu sabia que ele consegui me ver, embora eu não fazia idéia de onde ele estava. Fiquei com medo porque eu sentia que ele conhecia aquele lugar,eu sabia que ele ia me achar aonde eu estivesse. Não tinha pra onde figir, nem se esconder, eu só corria.
Não olhei mais para trás. Pelo menos eu tinha que salvar a minha pele e depois ver o que podia fazer. Corri até ficar encurrlada em um terreno sujo e cheio de concreto e encoberta num canto, só rezava pra alguma polícia chegar.
Ouvi, finalmente ouvi as sirenes e atrevi olhar por cima do muro do terreno. Eu estava no alto daqueles muros enormes que eu tinha visto antes. Olhei para baixo e lá estava o campo de areia, onde eu tinha ouvido pela última vez a menina gritar. Ela estava viva, vi ela sair debaixo da areia, gritando, pedindo socorro, descontrolada, chorando, não parava de tremer. E debaixo dela, ele, o velho, morto soterrado, cheio de areia na boca e no nariz. E apesar dos olhos dele estarem bem abertos, a areia cobria tudo por dentro das pálpebras. Não consegui entender o que aconteceu. Acho que deixou que o velho a alcançásse e esperou o momento para matá-lo, enquanto ele pensava que ia conseguir estuprá-la.
A menina correu para a polícia e com palavras mal articuladas e confusas, tentou explicar o que tinha acontecido.
Eu acordei cantarolando.